sábado, 10 de setembro de 2011

Estilos de época – o Barroco e o Arcadismo


Realizar-se-á um breve estudo acerca de dois “estilos de época” – o Barroco e o Arcadismo –, apontando as principais diferenças existentes entre um e outro. Visando tal objetivo, traçar-se-á uma síntese dos contextos históricos durante os quais prevaleceu cada uma das escolas literárias. Serão citados os mais representativos autores de cada estilo, objetivando confirmar as idéias aqui expostas.

O século XVI trouxe inúmeras mudanças ao continente europeu. As Grandes Navegações propiciaram a ampliação dos limites geográficos do mundo então conhecido pela Europa. Acreditando em sua capacidade de dominação e transformação da natureza por meio do uso da razão, o homem buscou a descoberta de novos conhecimentos científicos, resgatando a cultura clássica. Por outro lado, em 1517 ocorre a chamada Reforma. Lutero, opondo-se a Igreja Católica, funda uma nova corrente cristã, o protestantismo. Empenhada em recuperar o rebanho de fiéis perdido em muitas partes do continente para os protestantes, a Igreja deu início àquilo que se convencionou a chamar de Contra-Reforma. A criação nesse contexto da Companhia de Jesus insere-se nesse esforço de luta contra o protestantismo, visto que tal ordem religiosa enviou grandes contingentes de missionários a vários continentes. O século XVII presenciou alterações no quadro econômico, social, político e religioso. É o período em que a burguesia, dotada de grande poder econômico, se vê excluída da ascensão nas esferas social e política. Fazem-se sentir nesse momento, os reflexos das crises religiosas do século anterior: a Reforma (1517) e a Contra-Reforma (1563). É, portanto, uma época de ruptura e mudança de valores religiosos, durante a qual há a convivência entre formas de pensamento antigas e modernas. Essa dualidade refletir-se-á de forma bastante sensível na literatura produzida nesse período, o chamado Barroco. O século XVIII assiste a um fortalecimento sem precedentes do poderio econômico da burguesia. A antiga aliança entre esta e a nobreza é quebrada inicialmente na Inglaterra (1640-1688) e posteriormente, com maior vigor, na França (1789). Os valores cristãos passaram a ser duramente combatidos com base nos ideais iluministas, que pregavam o uso da razão e dos conhecimentos científicos. Este contexto histórico propiciará o surgimento de uma nova escola literária, o Arcadismo.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que o Arcadismo como “estilo de época” surgiu como contraponto ao Barroco. Obviamente, os árcades buscaram distanciar-se da estética barroca. Um primeiro ponto por eles criticado foi o exagero do Barroco. A ele contrapuseram uma simplicidade na forma. Nos poemas barrocos o exagero está sempre presente como no uso de vocabulário rebuscado e trabalhado ao extremo, uso de figuras de linguagem (principalmente a antítese, o paradoxo e a gradação). Por exemplo:

“Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e anjo florente,
Em quem, se não em vós se uniformara?”
(Gregório de Matos)

Nesse trecho citado acima há aspecto cultista (jogo de palavras) entre “Angélica” e “anjo” e entre “flor” e “florente”. A estética neoclássica procurou a leveza e a clareza de idéias, a linguagem direta e clara em contraposição aos hipérbatos e paradoxos barrocos.

O Barroco se caracterizou também por uma falta de unidade, certa confusão entre as mentes da época. O Arcadismo se diferenciou por mostrar um ideal em comum. O desprezo pela vida urbana e o gosto pela paisagem campestre – sintetizados pela expressão latina fugere urbem (fuga da cidade) – são exemplos de ideais compartilhados pelos árcades. Os versos a seguir, escritos por Claudio Manuel da Costa no século XVIII, ressaltam a violência da cidade, em oposição à paz do campo:

Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado

O Arcadismo ou Neoclassicismo busca imitar o Classicismo. Exemplo disso é Basílio da Gama, que teve influências do classicista Luís de Camões. Em seu livro Uraguai, o episódio da morte de Lindóia lembra o episódio da morte de Inês de Castro em Os Lusíadas.

“Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!”

Se os árcades vêem na imitação aos clássicos renascentistas o critério para a formação de bons poetas, o Barroco preza a restauração da fé religiosa medieval. No trecho a seguir, o Padre Antonio Vieira procura persuadir seus ouvintes a não se envolverem com as idéias da reforma religiosa protestante.

“A uns mártires penduravam pelos cabelos, ou por um pé, ou por ambos, ou pelos dedos, polegares e assim no ar, despidos, batiam e martelavam com tal força e continuação, os cruéis e robustos algozes, que ao principio açoitavam os corpos, depois desfiavam as mesmas chagas, ou uma só chaga até que não tinha já que açoitar nem ferir. A outros estirados e desconjuntados no ecúleo, ou estendidos na catasta aravam ou cardavam os membros com pentes e garfos de ferro, a que propriamente chamavam escorpiões, ou metidos debaixo de grandes pedras de moinho, lhes espremiam como em lagar o sangue, e lhes moíam e imprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa, sem figura, nem semelhança do que dantes eram. A outros cobriam todos de pez, resina e enxofre, e ateando-lhes o fogo, os faziam arder em pé como tochas ou luminárias, nas festas dos ídolos, esforçando-os para este suplicio como lhes dar a beber chumbo derretido.”

O fragmento supracitado é marcado também pelas influências da Contra-Reforma e, portanto, pelo esforço de contenção do protestantismo. A essa fé cristã contrapunham os árcades o uso da razão. Sendo o arcadismo uma expressão artística da burguesia, certos ideais políticos e ideológicos dessa classe – formulados pelo Iluminismo – foram veiculados pelos poetas árcades. Idéias de liberdade, justiça e igualdade social estão presentes em alguns textos da época. Como nestes versos de Tomaz Antônio Gonzaga:

O ser herói, Marília, não consiste
Em queimar os impérios: move a guerra,
Espalha o sangue humano,
E despovoa a terra
Também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
E tanto pode ser herói o pobre,
Como o maior augusto.

Quanto à forma, Arcadismo e Barroco divergem radicalmente. Como foi dito anteriormente, os árcades utilizam um vocabulário simples e cultivam um gosto pela ordem direta. Além disso, seus poemas são marcados pela quase total ausência de figuras de linguagem. O seguinte poema, de Claudio Manuel da Costa, é um exemplo dessa postura:

LXII

Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte rico, e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.

Por outro lado, o Barroco revela a utilização de um vocabulário culto, o gosto pela linguagem figurada, pelas inversões e por construções complexas e raras. Um exemplo disso é fornecido pelo seguinte poema de Gregório de Matos:

Buscando a Cristo

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lagrimas abertos,
Pois para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

O poema citado também permite outros apontamentos sobre o Barroco. Desta vez não quanto à forma, mas sim ao conteúdo. O eu-lírico preocupa-se com a salvação de sua alma, ao mesmo tempo em que demonstra ter consciência de sua vida de pecados. Neste sentido, há uma dualidade. Este mesmo caráter dual também aparece num outro fragmento de Gregório de Matos:

“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”

Como se viu, a arte de um modo geral – e, dentro desta, a literatura–, respondeu às diversas demandas históricas que motivaram sua criação. Em diferentes conjunturas da história humana, o homem representou a realidade de maneiras distintas, com objetivos igualmente diversos. Os diferentes quadros econômicos, sociais e políticos forneceram os subsídios para a constituição de mentalidades distintas, que por sua vez presidiram as formas pelas quais o homem apreendia a realidade e construía sua representação. Assim, a períodos de intenso fervor religioso seguiram-se fases de crença na capacidade humana para a resolução dos problemas impostos pela vida em sociedade; a fases de otimismo com relação à vida em sociedade seguiram-se momentos de desgosto em relação ao próprio homem. Espera-se, com esta breve exposição acerca das escolas literárias do Barroco e do Arcadismo, ter demonstrado essas vicissitudes da existência humana e de sua vida social, e a maneira pela qual imprimiram sua marca à produção artística.


sábado, 3 de setembro de 2011

Nacionalismo e a Literatura Brasileira

O objetivo do presente texto é discorrer sobre o tema do nacionalismo e suas relações com a literatura brasileira. A discussão girará em torno de dois aspectos importantes dentro do tema: a construção necessária do imaginário nacional e a crítica a esse nacionalismo.

A história do Romantismo no Brasil confunde-se com a própria história política brasileira do início do século XIX. Fatos como a invasão de Portugal por Napoleão e a subseqüente transferência da Coroa Portuguesa para o Brasil, ambos ocorridos em 1808, afetam profundamente a vida brasileira e contribuem para o processo de independência política nacional. A Independência, ocorrida em 1822, desperta a consciência de intelectuais nacionais para a necessidade de se criar um imaginário nacional com suas próprias raízes históricas. O Romantismo, antes mesmo de ser uma reação à tradição clássica, assume um importante papel no sentido de ser anticolonialista e antilusitano. Quanto a isso há um especial interesse, uma vez que a rejeição à Europa e aos seus códigos culturais dará o tom às criações artísticas dos românticos. O enaltecimento da figura do índio insere-se nesse movimento. Portanto, um traço essencial do Romantismo é o nacionalismo. Este se revela um norte ao movimento, abrindo um leque a ser explorado. Além do indianismo, tem-se também o regionalismo, a pesquisa histórica e as críticas nacionais, todos sendo aspectos ligados intimamente à constituição de uma identidade verdadeiramente brasileira.

Para a construção do imaginário nacional revelou-se de suma importância o apelo aos aspectos naturais do território, responsáveis em grande medida – aos olhos desses primeiros nacionalistas – pela formação de uma sociedade pacífica, democrática étnica e religiosamente, cuja existência seria marcada pela abastança e paz social. Referindo-se a esse nacionalismo “primitivo”, Antonio Candido nos diz:

(...) correspondia em primeiro lugar a um orgulho patriótico de fundo militarista, nutrido de expulsão dos franceses, guerra holandesa e sobretudo do Paraguai. Em segundo lugar vinha a extraordinária grandeza do país, com o território imenso, o maior rio do mundo, as paisagens mais belas, a amenidade do clima. No Brasil não havia frios nem calores demasiados, a terra era invariavelmente fértil, oferecendo um campo fácil e amigo ao homem, generoso e trabalhador. Finalmente, não havia aqui preconceitos de raça nem religião, todos viviam em fraternidade, sem lutas nem violências, e ninguém conhecia a fome, pois só quem não quisesse trabalhar passaria necessidade. (CANDIDO, 1995, p.13)

O papel desempenhado pela literatura não deve, em hipótese alguma, ser diminuído numa análise sobre a formação de um imaginário nacional entre os brasileiros e a posterior crítica a esse nacionalismo. Antonio Candido define o Romantismo como um “nacionalismo literário”. Os hinos laudatórios oitocentistas, como o próprio Hino Nacional, são representativos desse “amor febril” pelo Brasil. A literatura desse período, como demonstra Candido, inseria-se num contexto mais amplo de quebra dos laços que ligavam os brasileiros à Metrópole. Diz o autor:

O Romantismo no Brasil foi episódio do grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de independência. Afirmar a autonomia no setor literário significava cortar mais um liame com a mãe Pátria. Para isto foi necessário uma elaboração que se veio realizando desde o período joanino, e apenas terminou no início do Segundo Reinado, graças em grande parte ao Romantismo que, importando em ruptura com o passado, chegou num momento em que era bem-vindo tudo que fosse mudança. O Classicismo terminou por ser assimilado à Colônia, o Romantismo à Independência – embora um continuasse a seu modo o mesmo movimento, iniciado pelo outro, de realização da vida intelectual e artística nesta parte da América, continuando o processo de incorporação à civilização do Ocidente. (CANDIDO, 1995, p.10)

Aspirando a uma construção sólida da identidade nacional, que filiasse o Brasil a um passado independente da intervenção européia, havia a necessidade de personagens que reunissem em si os aspectos definidores da “brasilidade”. O índio atende a esse pré-requisito básico. Vê-se em Gonçalves Dias o maior representante da corrente dita “indianista”. Por meio de suas poesias, este escritor enalteceu tanto a figura do indígena como a natureza do Brasil – “I-Juca Pirama” e “Canção do Exílio” representam, respectivamente, estes dois aspectos –, construindo um verdadeiro projeto de identidade nacional.

Se por um lado tem-se esse comprometimento com a construção de um espaço nacional, de culto à glória da Nação, por outro deve-se destacar a atuação de indivíduos cujos esforços foram no sentido de negar os pressupostos erigidos pelos nacionalistas e demonstrar a falácia de suas idéias. Um dos pontos criticados diz respeito ao próprio esforço de fuga aos padrões europeus, do qual o enaltecimento da figura do índio faz parte. Há autores que criticam o nacionalismo tanto do ponto de vista de seus aspectos formais quanto do ângulo de sua visão conservadora, baseada em costumes europeus. A esse respeito Sandra Jatahy Pasavento diz:

[...] Embora o romantismo se volte para o específico e o singular, que dariam o tom original brasileiro no contexto da civilização ocidental, seu padrão de referência ainda é a Europa. Na falta de um passado clássico ou de uma Idade Média, José de Alencar vai idealizar o substrato nativo, nas trilhas do indianismo romântico que permite criar o “mito das origens” para o Brasil [...] A positividade das virtudes do índio era afirmada como compensação simbólica diante da carência das tradições históricas que a Europa esbanjava. Romantizado o contato com o homem branco [...] O resultado é uma recriação imaginária distante das condições concretas da existência, mas que não invalida a sua força de representação. A leitura do real feita pelo texto literário era dotada de uma alta carga de positividade para a elite branca escravista e se apresentava como plausível e conveniente [...] Por outro lado, a menção a uma América como pano de fundo para performance brasileira, encontrada na prosa e poesia romântica, não constitui um horizonte para a construção da identidade nacional.(PASAVENTO, 1998, p.25)

Leyla Perrone remete a outro motivo pelo qual haveria tamanha necessidade em constituir nossa imagem diante do Outro, mencionando o fato de sermos um “lugar desprovido do passado do Outro e destituído do seu próprio passado”. Perrone destaca a importância da literatura como agente efetivo na constituição da consciência nacional, no Brasil e nas outras nações latino-americanas. Observa a autora:

[que] “Numerosos estudos sobre o nacionalismo demonstraram que a nação é um conjunto de imagens, e que ela se constitui graças a metáforas. Algumas metáforas utilizadas nos discursos identitários da America Latina nos permitem captar as dificuldades da constituição de sua auto-imagem e verificar que essa imagem depende sempre do outro europeu, quer seja para imitá-lo, quer para rejeitá-lo.” (MOISES, 2007, p.33)

Percebe-se que as metáforas criadas são demasiadamente autodepreciativas, ou, pelo menos, conflituosas. Exibem claramente um sentimento de inferioridade em relação à Europa. A questão de americanismo aparece em vários autores latino-americanos, inclusive em Sérgio Buarque de Holanda:

“Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. (HOLANDA, 1981, p.3)

À consolidação da independência política do Brasil ou, em outras palavras, ao advento do Estado nacional entre nós teve de corresponder, no plano do imaginário, a formação de uma identidade propriamente brasileira. A partir de então, um novo Estado deveria construir a figura de seu próprio povo, traçar uma história para o mesmo e dar-lhe símbolos nacionais aos quais cultuar. Tal processo de formação da identidade brasileira – baseado no enaltecimento dos povos primitivos e das características naturais do território –, e que veio a culminar no surgimento do nacionalismo serviu-se em grande medida da literatura como veículo para suas idéias. Poesias, romances e hinos cantaram as belezas naturais do país cujo povo – refletindo a grandeza territorial, a riqueza da fauna e da flora e a abundância de outros recursos naturais – organizou-se numa sociedade pacífica e próspera. Séculos de uma história marcada indelevelmente pela violência e pelo derramamento de sangue foram esquecidos em nome de uma idealização do passado que visava à formação de uma identidade útil ao presente, demandada por elites dominantes e construída por intelectuais e artistas comprometidos com a causa. Em sentido oposto, a crítica a esse movimento de construção da “brasilidade” é profundamente frutífera, ao demonstrar o caráter ideológico dos discursos por ele engendrados e os pressupostos sobre os quais foram construídos, ampliando a percepção das bases políticas, econômicas e sociais sobre as quais foi erguido nosso próprio país.